terça-feira, 14 de outubro de 2008

De Paulo Bortoli Para Gilberto

Caro Gilberto,

Nasci em 1953, não falei até os 3 anos e minha mãe pensava que eu era mudo (Einstein falou aos 4 anos e a mãe dele também pensou que ele era mundo) . Depois comecei a falar e acho que ela deve ter ficado um pouco arrependida, pois as vezes falo demais e digo muita bobagem.

Meu primeiro contato com surdos foi na infância, tinha dois tios surdos um da família de meu pai e outra da família da minha mãe, curiosamente ambos se chamavam Mário. Um usava um aparelho num dos ouvidos, lembro que quando a família de meu pai se reunia ele sempre participava das conversas com um fone no ouvido ligado a um fio que ia até um aparelho preso na cintura, mas, numa família de origem italiana e afro seguidamente brincavam com o tio Mário. O pessoal começa a falar cada vez mais baixo e o tio ia aumentando o som do aparelho, de repente falavam bem alto e ele levava um susto ou alguém ia por trás dele e mexia no botão do volume abaixando o som. Ele xingava todo mundo, mas, tudo acaba em festa. As brincadeiras não eram só com ele, meus tios e primos mais velhos estavam sempre brincando uns com os outros.

O tio Mário da família da minha mãe, casado com a irmã dela, era sapateiro não me lembro dele conversar comigo, porém, lembro que minha mãe dizia para falar bem alto com ele porque era surdo. Ele era muito quieto, mas manifestava gostar dos sobrinhos mais que minha tia.

Isto fio nas décadas de 1950 e 1960. Nenhum dos dois usava sinais.

Aos 17 anos, 1971, comecei a trabalhar de estafeta (office boy) no centro de Porto Alegre, estava sempre na rua da Praia. Lembro de ver na frente das Americanas, perto da Praça da Alfândega e na frente das lojas Masson grupos de surdos conversando usando sinais, não tinha idéia do eles significavam, mas compreendi que era assim que conversavam.

Anos depois, 1982, na cidade de Canoas, já formado e trabalhando como professor, a escola onde trabalhava recebeu uma aluna surda na 7ª série. Somente semanas após ela estar na escola é que os professores foram informados de que ela era surda e que devíamos falar olhando para ela. Numa escola com mais de 800 alunos ouvintes, turmas com 30 a 40 alunos e nenhum professor com capacitação para trabalhar com surdos, claro que não deu certo. A família a transferiu para outra escola. Nunca descobri para qual escola, nem como sua vida continuou.

Passaram muitos anos e comecei a fazer mestrado em Educação, meu interesse era no uso da Informática na Educação e resolvi fazer um projeto de software educacional para auxiliar na alfabetização de surdos. Para minha surpresa os ouvintes não queriam aprovar porque eu não era surdo, argumentei que eu estudaria e pesquisa sobra a surdez e que praticamente todos os software existentes eram para ouvintes, pouco ou nada havia para os surdos. Minha argumentação foi aceita. Fiz cursos de LIBRAS, visitei escolas de surdos, li muito do a surdez e conheci alguns surdos e ouvintes que trabalharam com surdos que me apoiaram. Em 2000 conclui o mestrado e o programa, ele foi instalado na Escola Frei Pacífico e distribuído para algumas outras escolas em CD, não sei como está sendo usado atualmente.

Segui desenvolvendo software que podem ser usados por surdos e ouvinte, são vários e dois deles estão disponíveis no site da Editora Arara Azul.

A SMED de Porto Alegre começou a oferecer cursos de LIBRAS para professores e funcionários, tentei algumas vezes participar dos cursos, mas nunca tinha vaga para mim. Em 2003 consegui uma vaga, foram três anos de curso e a turma que começou com 28 alunos terminou com cinco.


No entanto ainda não tinha trabalhado com surdos, já havia desistido quando em 2005 recebi uma proposta para trabalhar no CMET com jovens e adultos surdos, aceitei na hora. Foi e continua sendo um desafio, há alunos que não conhecem bem os sinais ou utilizam sinais próprios, junte a isto que são aulas de matemática para pessoas que tem pouca escolaridade. É um trabalho difícil, porém muito gratificante.

Talvez no próximo ano me aposente. Mereço como todo trabalhador, terei 38 anos de trabalho, destes 33 na educação, mas pretendo de alguma forma continuar trabalhando com surdos ou para os surdos.

Abraço,

Paulo R. Bortoli


ps.: ficam faltando as fotos, logo que encontrar lhe envio.


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